sábado, dezembro 02, 2006

VOCÊ NÃO ENTENDE NADA/COTIDIANO

http://www.youtube.com/watch?v=E6GdSgHXShc

VOCÊ NÃO ENTENDE NADA (Caetano Veloso)
Quando eu chego em casa nada me consola, você está sempre aflita
Lágrimas nos olhos de cortar cebola, você é tão bonita
Você traz a coca-cola, eu tomo
Você bota a mesa, eu como, eu como, eu como, eu como, eu como
Você não tá entendendo quase nada do que eu digo
Eu quero é ir-me embora, eu quero dar o fora
E quero que você venha comigo
Eu me sento, eu fumo, eu como, eu não agüento, você está tão curtida
Eu quero é tocar fogo neste apartamento, você não acredita
Traz meu café com suita, eu tomo
Bota a sobremesa, eu como, eu como, eu como, eu como, eu como
Você tem que saber que eu quero é correr mundo, correr perigo
Eu quero é ir-me embora, eu quero é dar o fora
E quero que você venha comigo...

COTIDIANO (Chico Buarque)
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

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em algum momento alguém resolveu cantar essas duas músicas conjuntamente. um casamento perfeito, uma vez que ambas tratam da mesma coisa, do mesmo assunto, da mesma sensação de náusea que alguns homens sentem na cotidianidade, a vontade tresloucada de chutar tudo, procurar uma vida fora da alienação diária, diuturna, neuroticamente enlouquecedora da repetição dos dias. percebe-se que o que ainda não os deixa simplesmente enlouquecer de uma vez é a presença da mulher: que não cura esse sofrimento, mas o amor que sentem por ela torna essa incomunicabilidade ainda mais sofrida. a mulher que parece não entender esse profundo desespero. a mulher que é amarra e esperança, que faz todo dia tudo sempre igual, mas que se deseja mesmo assim que vá junto.

uma estranha e profunda relação entre homem e mulher, uma mulher que se apóia em tudo em um homem que ama, mas um homem em ponto de ruptura.

na mitologia africana essa tensão pode ser vista no relato das histórias de oxóssi, o orixá da caça, o corre-mundo, e de seu casamento com a refinada oxum, das jóias refinadas, faceira, bela e sensual como só ela pode ser. ou a desobediência de oxóssi a sua mãe iemanjá: vai à mata, é afinal sequestrado por ossaim e quando volta é expulso de casa. ogum, seu irmão, um impaciente corre-mundos também deixa a casa. e iemanjá torna-se a imagem do sofrimento, chorando a distância dos filhos, distância esta decorrente da sua não compreensão deste impulso masculino.

é interssante, pois na mesma mitologia afro-brasileira, os orixás do conhecimento sõ os orixás "de fora", os corre-mundos, os apartados: ossaim, que mora na mata, isolado, e detém o conhecimento das folhas, da ciência médica; oxóssi, o caçador que traz esse conhecimento da mata aos homens, a filosofia, a sabedoria; e ogum, que pesquisa os metais, faz a guerra, abre estradas, e é a técnica.

a técnica, a ciência e a sabedoria não se acham na cotidianidade, no espaço "de dentro", mas fora, e muitas vezes são difíceis de expressar, assim como o impulso em sua direção, como dizem as músicas: "todo dia eu só penso em poder parar, meio dia eu só penso em dizer não", "você tem que saber que quero é correr mundo, correr perigo, eu quero é ir-me embora, eu quero dar o fora, e quero que você venha comigo".

o impulso à frente não se encerra na cotidianidade. um impulso diferente da construção: essa sim precisa ser laboriosamente cotidiana, soma que é de pedra sobre pedra, tijolo sobre tijolo, viga sobre viga. esta precisa da adminstração perseverante, mas só ocorre depois que houve o impulso da ciência, da técnica, da sabedoria na escolha de ambas. o impulso da descoberta é anterior, a "novidade" é anterior. por isso, dente o panteão afro-brasileiro, oxóssi e ogum, principalmente, representam o novo, o alargamento de limites e fronteiras, enquanto xangô e oxalá representam a estabilidade, a manutenção do que se constrói.

construções assim repetem-se em todas mitologias. odin, o grande deus nórdico da guerra é também viajante, é também um deus do conhecimento: troca um dos seu solhos por todo o conhecimento do mundo, se faz acompanhar por dois corvos e dois lobos, sempre vestido com uma capa de viagem, e raramente parando em sua cidade, uma vez que está sempre a perambular a pé ou sobre seu cavalo de oito pernas.

e a mensagem é sempre a mesma: o conhecimento urge, e está "lá fora". e tensiona-se com a cotidiano, sobrevindo algum tipo de rompimento, de ruptura: a estabilidade é estagnação.