segunda-feira, julho 02, 2007

UNE NUIT, UN CHAT




os olhos brilhavam na escuridão e daquele ponto observava os humanos. morava em um parque arborizado na avenida paulista, e, naquela noite, sorrateiramente atravessara uma rua lateral, passara por meio a prédios escuros, aboletara-se no canto superior externo da mansarda de um prédio em construção.
não era nem grande nem pequeno, de dia diriam que era malhado, ou rajado. algum gatófilo pernóstico diria que era um belo exemplar de brazilian tabby. mas era noite, e sabe-se, à noite todos os gatos são pardos, e não era ele uma exceção.
“samedi, le nuit. pourquoi les humains sont tant bizarres?” perguntava-se observando os pedestres nas calçadas.
uma mulher o viu, quis chamá-lo, mas seu chamado chegou aos seus sensíveis ouvidos como um guincho estridente, fazendo-o recuar, escondendo-se na sombra.

mulheres costumam gostar mais de gatos do que os homens, que costumam preferir os cães, e não entedia isso, pois grande parte das mulheres preferem os homens, e homens e cães são muito semelhantes. sabia que homens e cães diferem talvez em alguns poucos aspectos, tal como o fato de que os cães possuem um rabo longo que sempre abanam, entregando suas emoções. alguns cães tinham o rabo cortado, e então seriam confundidos com os homens, não fossem outros dois pequenos detalhes: inteligência e fidelidade. por isso ele não entendia a preferência das mulheres: a diferença a favor dos homens na inteligência era tão mínima que não faria grande diferença, mas no quesito fidelidade, tanto reclamado por elas, a diferença era gritante.
“réellement, je ne peux pas comprendre les humains”, pensava. lembrava que alguns gatos possuíam humanos que lhes davam comida, faziam-lhe carinhos e massagens e limpavam seus excrementos. no entanto, designavam-se donos, e não escravos ou servos, como seria mais adequado. era tão bizarro...
mas havia humanos que eram mais evoluídos. com certeza faltavam-lhe poucas encarnações para que atingissem o nível de evolução espiritual mínimo para renascerem como gatos. eram facilmente identificados, apesar de tão raros: seu olhar possuía aquela profundidade, aquela capacidade de penetrar as pessoas como o típico olhar felino.e eram dotados de outra característica superior felina: mais do que a ironia ou o sarcasmo, a mordacidade. irônicos e sarcásticos muitos são. mas realmente mordazes, muito poucos, pois a mordacidade é a soma da ironia com a elegância e a cultura. é muito mais sofisticada do que o mero sarcasmo. e de real sofisticação, que não se confunde com o luxo, ninguém entende melhor que os gatos.
estranhamente, esse tipo de humano atraía algumas mulheres como os gatos as atraem. sentem-se magnetizadas, mas não os entendem. nem sequer sabem qual o motivo dessa atração, pois esse tipo de humano é como boa parte dos gatos: nem feios, nem bonitos, possuem um certo desprezo aristocrático em relação às coisas materiais. afinal, quem gosta disso são os cães: enterram seus ossos, e os humanos, por sua vez, chamam seus ossos de “dinheiro” e também os enterram num local chamado banco. cães e humanos se pareciam numa outra coisa: os cães, periodicamente desenterram seus ossos fedidos e desfilam com eles à boca pelo jardim (como se dissessem: “olhem quantos ossos acumulei!”); os humanos fazem o mesmo: desfilam com seu dinheiro, materializado em carros, ou outras coisas que também fedem.
“ah, les humains!” desistira há muito de entendê-los, mas não de observá-los, pois era muito engraçado. eram tão ridículos em suas vaidades, suas disputas pela liderança da matilha, como fazem os cães. os gatos sabiam que isso não leva a nada. disputar ossos e lideranças. “grosse merde!” há tanta coisa no mundo a ser vista! é isso que os gatos pensam, por isso dizem que eles sabem viver. e dizem o mesmo dos raros humanos-felinos.
ele pensava quando ouviu o longo chamado de alguma gata das redondezas. espreguiçou-se um pouco, levantou-se: “hélas! où est la femelle? il faut chercher la femme!”, e sumiu na escuridão.

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gatos pensam em francês. com exceção, claro, dos gatos franceses e belgas, pois esses pensam em africâner. os gatos sul-africanos, por si, pensam na língua dos esquimós, e os gatos esquimós... bem, não há gatos o pólo norte, pois gatos são gatos, e não burros.

(textos recuperados graças aos arquivos de bruna e camilo)

1 Comments:

Blogger Ramon de Alencar said...

...
-Fez-me lembrar do Poe e dos seus gatos...gostei do conto.

9:51 PM  

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